A intertextualidade em atividades de compreensão leitora no ensino de e/le

Fabiana da Cunha Ferreira
Comando da Aeronáutica RJ
Maria Cristina Giorgi
Universidade do Estado do Rio de Janeiro


Este trabalho, baseado na Análise do discurso de cunho enunciativo, tem como objetivo aprofundar conhecimentos sobre a intertextualidade, assim como verificar a importância que é atribuída a esse conceito no ensino de E/LE. Nesse sentido, buscamos identificar marcas que permitem a professor e aluno reconhecer/compreender sentidos instituídos no texto a partir do seu diálogo com outros textos. Para tal, solicitamos a nossos informantes, professores da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, em sua maioria, que elaborassem exercícios a partir de alguns textos e verificamos que a maior parte não considerou tal conceito. Recorremos a aportes teóricos do Círculo de Bakhtin (1979) e Maingueneau (1998), no que se refere à linguagem, e a Daher y Sant'Anna (2002), no ensino de LE.

Palavras-chave: intertextualidade, análise do discurso, ensino E/LE, gênero de discurso.3


APRESENTAÇÃO E BASE TEÓRICA1

        Acreditando que um texto está sempre relacionado a outros, e vendo nesse diálogo o fio condutor que nos permite compreender seus sentidos, pensamos que faz parte da atividade do professor formar alunos reflexivos, capazes de identificar diferentes sentidos existentes em cada texto. Uma vez que muitas vezes tais sentidos não são perceptíveis em um primeiro momento e que há uma multiplicidade de compreensões possíveis, cabe ao professor dirigir a leitura de forma crítica e consciente, fazendo das aulas espaços produtivos onde se expandam os conhecimentos lingüísticos e aumentem cada vez mais as possibilidades de interpretação dos textos.
        Pensamos que o próprio professor deve - consciente de sua subjetividade e das marcas discursivas que a refletem - criar espaços que levem os alunos a interagir com as várias vozes existentes em cada texto, explícita ou implicitamente, possibilitando novas construções de sentido. Ou seja, em lugar de sujeito passivo, deve-se possibilitar ao aluno assumir um papel mais ativo, de maneira a permitir que ele se aproprie das informações presentes nos textos, estabelecendo uma rede de correlações com base em sua própria cultura e relacionando-a com culturas alheias. Para isto, é fundamental a ação do professor, a quem compete elaborar tarefas que provoquem essas reflexões.
        Outrossim, consideramos que o papel social do professor transcende o espaço da sala de aula e que é sua função garantir a todos o acesso ao conhecimento. Significa dizer que esse profissional deve ser mais que um simples executor de tarefas prescritas; deve integrar pesquisas sobre a ação educativa, refletindo, inclusive, a proposta dos PCNs que pressupõe uma mudança nos rumos de nossa educação, remetendo-nos a uma escola que precisa propiciar meios que garantam ao aluno o exercício de sua cidadania, a partir do reconhecimento e da identificação das diversidades existentes entre os mesmos. Portanto, torna-se indispensável que o professor tenha preocupações não apenas com a transmissão de conteúdos gramaticais, mas também com sua própria visão sobre língua e de como ela influencia a formação de seus alunos.
        Com base em pesquisas da professora Alba Celani² , é possível afirmar que não houve uma grande evolução na questão do ensino de língua estrangeira (doravante LE), mesmo após a aprovação da nova LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) em 1996. Uma das causas desse problema reside nos programas de formação de professores oferecidos pelas universidades e no isolamento desses profissionais em suas práticas pedagógicas.


O que torna a situação particularmente difícil são as raízes profundas desse problema, que começam no tipo de programa de formação de professores oferecidos pelas universidades. Outro fator relacionado a essa problemática situação é o isolamento em que se encontram os professores de inglês, freqüentemente impedidos por suas condições de trabalho, de conversar com seus pares e desenvolver trabalhos conjuntos. (Celani, 2003:71-72)


        Por considerar que o trabalho do professor implica uma formação contínua, verificamos a necessidade de aprofundar nossos conhecimentos em relação a questões de leitura em sala de aula. Assim, no intuito de melhorar nossa prática pedagógica, ingressamos no curso de Especialização em Língua Espanhola instrumental para leitura (Instituto de Letras/UERJ), majoritariamente formado por professores que integram a rede municipal do Rio de Janeiro. Dentre nossos interesses, estava o desejo de melhor compreender a noção de intertextualidade3, visto que: (a) identificávamos que nossos alunos do ensino médio (EM) encontravam dificuldades para estabelecer relações de sentido a partir do diálogo entre textos e (b) nos deparávamos com a necessidade de elaborar tarefas que lhes propiciassem uma melhor compreensão com relação ao tema, seguindo Daher & Sant'Anna (2002:61-62), que afirmam que cabe ao professor dirigir "la mirada del leitor-aluno hacia el texto", o que pressupõe produção de:


una doble constitución de la situación [de lectura en clase]: la primera corresponde a la oportunidad de observación de elementos del texto que el lector-aluno, quizás, no lograría observar por si sólo; la segunda define la situación de lectura como distinta de la que se realizaría fuera del ámbito de enseñanza y aprendizaje. Esa doble constitución también define la actividad de enseñanza de lectura para el enunciador-profesor, ya que éste registra por medio de sus preguntas/ejercicios su modo de aprehensión de los sentidos del texto.


        Observamos que grande parte dos professores/alunos também demonstrava dificuldades na compreensão de propostas apresentadas pelos docentes e desconhecia/desconsiderava conceitos teóricos relacionados à leitura, assim como relatava problemas relativos à elaboração de atividades práticas de compreensão leitora para suas aulas. Tal fato fez-nos refletir sobre qual relação ensino/aprendizagem esses professores desenvolvem com seus alunos - tomando por base tanto o perfil de professor construído nos PCNs e suas respectivas propostas, como nossa crença de que a escola deve garantir ao aluno


o acesso aos conhecimentos indispensáveis para a construção de sua cidadania e as aprendizagens essenciais para a formação de cidadãos autônomos, críticos e participativos, capazes de atuar com competência, dignidade e responsabilidade na sociedade em que vivem e na qual esperam ver atendidas suas necessidades individuais, sociais, políticas e econômicas. (PCNs - Volume Introdução, 1998:9)


        Sob o nosso ponto de vista, as dificuldades encontradas são resultado do desconhecimento por parte dos professores no que tange a conceitos como gênero discursivo e dialogismo esses conceitos não deveriam estar em itálico? (Bakhtin, 1979/1992), que nos parecem fundamentais para o ensino de língua, quer estrangeira, quer materna. O conceito de dialogismo bakhtiniano atravessa toda nossa reflexão. Entende o autor que as idéias, o pensamento humano, são construídos por meio de relações dialógicas, e somente quando essas relações se estabelecem, cada idéia começa a ter vida, possibilitando a geração de novas idéias. Só é autêntico o pensamento que se materializa na voz do outro e entra em contato com outros pensamentos. (Bakhtin, 1979)
        Adotamos neste trabalho o conceito de gênero proposto também pelo autor russo (Bakhtin, 1979), para quem cada gênero de discurso é parte de um repertório de formas disponibilizado pela linguagem, sempre relacionado à sociedade que o utiliza, uma vez que cada esfera de uso da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados. É por meio do reconhecimento de características particulares que distinguem um gênero de outro, que os parceiros da comunicação estabelecem as bases do seu entendimento, podendo situar-se dentro do contexto da comunicação e prever suas características e finalidades. Desta forma, o gênero garante aos falantes de uma língua o ato de comunicar-se, permitindo uma economia cognitiva entre os interlocutores. Consideramos que, na busca por marcas que nos permitam identificar outros textos dentro de um mesmo texto, as características genéricas desempenham um papel fundamental, pois garantem que sejamos capazes de reconhecer importantes pistas discursivas/temáticas, composicionais ou de estilo - que funcionam como apoio à remissão a outros textos.
        A partir do exposto, acreditamos que aprofundar estudos sobre a intertextualidade e pensar tarefas que considerem a dificuldade de sua compreensão por parte dos alunos de espanhol como língua estrangeira (E/LE) poderá nos ajudar a melhor compreender a natureza de nossa atividade como docentes de língua e, ao mesmo tempo, melhor entender a própria intertextualidade. Optamos por fazê-lo a partir de fontes teóricas da Análise do Discurso de base enunciativa, que compreende a língua a partir de seus usos, isto é, na prática social, e não como uma estrutura isolada, não dissociando, dessa forma, lingüístico e extralingüístico como construtores de sentido.
        Para melhor compreender de que forma os professores de E/LE relacionam intertextualidade ao ensino/aprendizagem de LE e como lidam com essa questão em sala de aula, criamos um instrumento com o objetivo de: (a) verificar se esses professores reconhecem a intertextualidade como uma noção constitutiva de qualquer texto, portanto, fundamental na elaboração de atividades de leitura em aula e ao acesso a sentidos do texto; assim como (b) apontar ferramentas que permitam a esses profissionais agir em sala de aula de forma mais consciente diante da intertextualidade presente nos textos em LE, propondo atividades que dirijam a leitura dos alunos, aumentando a possibilidade de construção de sentidos possíveis, ao considerar que, de alguma maneira, todos os discursos conversam com outros com os quais se inter-relacionam, sendo cada um sempre uma resposta a ditos anteriores e uma provocação a futuros. Assim, o texto não possui um sentido acabado, ou seja, está em constante mudança e recebe novos significados de acordo com o sujeito que o lê, já que este, para estabelecer ditas relações, deverá "acrescentar-lhe" seu próprio conhecimento de mundo. Podemos dizer, então, que textos são resultados de atividades lingüísticas, repletos de pistas que expressam conhecimentos acumulados tanto do autor como do leitor.
        Por saber que as noções de interdiscursividade e intertextualidade são de difícil operacionalidade e que diversos teóricos dedicam-se a este estudo, enumeramos aqui definições propostas por alguns teóricos, propostas por Charaudeau e Maingueneau (2004).


A noção de intertextualidade foi introduzida por Kristeva (1969) para o estudo da literatura; com isso chamava a atenção para o fato de que a produtividade da escritura literária redistribui, dissemina... textos anteriores em um texto; seria preciso, pois, pensar o texto como intertexto. Concepção ampliada por Barthes: "Todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis [...] O intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja origem raramente é recuperável, de citações inconscientes ou automáticas, feitas sem aspas" (1973) Gennete (1982) preferiu falar de transtextualidade, conferindo assim um valor mais restrito à intertextualidade. Sua tipologia das relações transtextuais distingue: a intertextualidade (...), a paratextualidade (...), a metatextualidade (...), a arquitextualidade (...) a hipertextualidade. (Charaudeau & Maingueneau, 2004:288-289)


        Como é possível verificar por meio do exemplo, não há consenso entre os teóricos que se dedicam a esse estudo. Conforme Fiorín (1999), é difícil delimitar diferenças entre os conceitos de intertextualidade e interdiscursividade e, por este motivo, o autor propõe que a "intertextualidade não é um fenômeno necessário para a constituição de um texto. A interdiscursividade, ao contrário, é inerente à constituição do discurso". Considera, assim, que a intertextualidade pressupõe um processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir ou para transformar o sentido incorporado. Já a interdiscursividade refere-se ao processo de incorporação de percursos temáticos e/ou figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro. Este último é inerente a qualquer discurso, sendo constitutivo do mesmo.
        Tendo como objeto de trabalho o ensino de línguas estrangeiras, somam-se à nossa proposta diversas dificuldades, visto que o fenômeno de intertextualidade pressupõe um conhecimento especial sobre o mundo e a sociedade que nos cerca, inclusive quando se trata de nossa língua materna. Significa dizer que estaremos tratando de discursos que não traduzem nossa realidade, nem expresam um conhecimento próximo de nossa experiência como professores de LE. Esta pesquisa pressupõe trabalhar com textos originais, dirigidos a falantes do espanhol, e não a professores e alunos que não fazem parte do grupo de coenunciadores pensado pelo enunciador do texto. Surge, então, a necessidade de ter em conta, além da competência lingüística dos novos leitores modelo (Maingueneau, 2004), também sua competência enciclopédica. Por esse motivo, enfatizamos a importância do papel do professor na preparação prévia das aulas que, sem dúvida, "minimizaria" as incompreensões dos alunos. Nesse sentido, parecem-nos essenciais as considerações teóricas propostas por Maingueneau (2001), no que diz respeito às competências genérica e enciclopédica. A primeira compreendendo o domínio das leis e gêneros do discurso e a segunda, os conhecimentos sobre mundo que acumulamos ao longo da vida, ambos responsáveis por nossa capacidade de interpretar e produzir enunciados adequados às diversas situações sociais que nos são impostas.

PASSOS METODOLÓGICOS

        Como já foi dito, este trabalho, em termos gerais, pretendeu verificar se os professores de E/LE reconhecem a intertextualidade como uma noção relevante para a compreensão leitora e se a consideram quando elaboram suas atividades de aula. Para isso, nosso primeiro passo foi a seleção de textos em jornais e/ou livros com explícita referência a outros textos adequados ao trabalho com nossos alunos. Essa escolha considerou diferentes gêneros, porque, ainda que os textos apresentem características estáveis que facilitam o estabelecimento de relações com textos de LM, não podem ser tratados como blocos homogêneos. Não se pode, então, desprezar a dimensão heterogênea que implica a noção de gênero.
        O segundo passo foi definir os meios adequados para a coleta de dados entre os professores do grupo de alunos da especialização. Como instrumento de pesquisa, escolhemos trabalhar com uma proposta de elaboração de atividade, já que em uma entrevista seria mais difícil que separássemos as posições de colegas de sala de aula e pesquisadoras.
        Para sua confecção selecionamos duas charges4 do jornal O GLOBO, três tiras da personagem argentina Mafalda e um texto do livro Patas arriba, la escola del mundo al revés, de Eduardo Galeano. Essa escolha ocorreu a partir de critérios distintos. As charges, além de fazerem uma menção explícita a outros textos, fizeram-nos supor que não apresentariam interferências de compreensão, pelo fato de que estavam escritas em língua materna. Por sua vez, nas tiras de Mafalda havia uma frase bastante conhecida: "Conócete a ti mismo". Além disso, essa personagem é bastante popular no meio de professores de espanhol, o que facilitaria a elaboração do trabalho. O texto de Galeano pareceu-nos interessante por apresentar várias referências intertextuais e por ser datado do século dezoito e adaptado para a apresentação de um livro destinado a educadores, ainda que essa informação não tenha sido dada aos informantes.
        No que se refere especificamente à noção de gênero, as charges tratam de temas contemporâneos, problemáticas sociais. Uma de suas características essenciais é articular linguagem verbal e não verbal. Além de provocar o humor, são tão ricas quanto outros textos -opinativos, editoriais, por exemplo - podendo expressar posicionamentos críticos sobre personagens e fatos políticos. Em geral, sintetizam uma realidade política, e só aqueles que as conhecem podem construir seus sentidos. Desta forma, por estarem diretamente relacionadas a um fato ou personagem específico, são temporalmente limitadas. Em suma, são textos que atraem a atenção do leitor, por serem de rápida leitura e transmitirem múltiplas informações de forma condensada.
        Já as tiras costumam ter um caráter atemporal - como as de Mafalda -, podendo ser utilizadas em épocas e espaços distintos, ou seja, deslocadas de um contexto para outro. Por sua vez, o texto de Galeano remete-nos a uma tradição oral, pouco conhecida hoje em dia, fato que nos fez pensar que os professores o utilizariam para fazer com que seus alunos pudessem recuperar e valorizar esta prática.
        Selecionados os textos, elaboramos nosso instrumento, dividindo-o em duas partes. A primeira objetivou verificar se o professor identificaria a intertextualidade como parte constitutiva dos textos. A segunda, comprovar se e como os docentes abordariam tal conceito na elaboração de tarefas para seus alunos. Para tal, foi-lhes solicitado que escolhessem pelo menos um dos textos entregues para a preparação de uma atividade de compreensão leitora. Pedimos a eles também que nos indicassem o perfil dos supostos alunos, os elementos responsáveis pela escolha do texto e o objetivo da tarefa proposta.
        Para que nossa proposta ficasse mais clara, sem identificar claramente nosso propósito, introduzimos uma citação de Daher & Sant'Anna. Depois, pedimos aos docentes uma análise das duas charges, que são referências explícitas a outros textos. Para facilitar a compreensão de nossa pesquisa, reproduzimos aqui parte de nosso questionário.


Quadro

Los estudios del Círculo de Bakhtin (1979/1992) sobre dialogismo consideran que todo enunciado instituye un YO que se dirige a un TÚ y, a la vez, un discurso que dialoga con otro discurso. Así, todos los discursos, de alguna manera conversan con otros, que se interrelacionan, siendo cada discurso siempre una respuesta a dichos anteriores y una provocación a los futuros. (Daher & Sant'Anna, 2002)
- Considerando a citação acima apresentada, estabeleça uma relação entre os seguintes textos:

Em seguida, a partir dos textos anteriormente descritos, foi pedido aos professores:

Quadro 2

1- Escolha pelo menos um deles e elabore uma atividade de compreensão leitora adequada a um de seus grupos de alunos.
2- Descreva o perfil desses alunos (nível, série, faixa etária média), aponte que elementos o levaram a escolher determinado texto e qual o objetivo da sua questão.

        Solicitamos a dois colegas que não faziam parte do curso de Especialização que lessem o instrumento para saber se havia alguma dificuldade para compreender o que era solicitado em nossa proposta. Em seguida, o questionário foi entregue aos dezoito professores, alunos da Especialização. Somente seis questionários desse total foram-nos devolvidos. Parece-nos importante ressaltar que a não devolução dos questionários de nossos colegas, em sua grande maioria docentes, caracteriza uma falta de compromisso com propostas investigativas, que pressupomos básicas como procedimento de um professor, em cujo perfil nos baseamos neste trabalho. De qualquer forma, reproduzimos, íntegra e literalmente, aqui as respostas recebidas. Nossa análise não integra todas as respostas que obtivemos nos questionários, visto que selecionamos os enunciados que nos pareceram mais relevantes, dentro do escopo de nosso trabalho.

ANÁLISE

        Antes de relatar a análise de nosso corpus, com base na pesquisa de Nunes e Vargens (2004), cabe relevar que a leitura dos questionários, além de ser um passo metodológico que faz parte de nosso trabalho, implica considerações que gostaríamos de comentar, uma vez que nos confrontamos não só com informantes, mas também com colegas de sala de aula. Nessa dupla relação, estão envolvidos valores e crenças, seja por nossa parte, seja por parte de nossos companheiros. Expectativas e posicionamentos frente às questões propostas, que podem refletir relações pessoais, o que pode prejudicar as análises, uma vez que “nosso imaginário resulta de interiorização de valores e crenças presentes na sociedade e acompanha nossas ações e pensamentos” (Nunes & Vargens, 2004:12).
        Para facilitar a compreensão da análise, optamos por apresentá-la organizada em duas partes. Assim, enfocamos a questão proposta diretamente ao professor, objetivando identificar os conceitos teóricos utilizados por ele e observar a incidência específica da intertextualidade para, num segundo momento, melhor compreender as tarefas propostas.
        No que se refere à primeira parte do questionário, a maioria dos informantes relacionou os vários textos presentes nas charges a alguns conceitos teóricos, ainda que não tenham se referido de forma explícita às noções de dialogismo e intertextualidade. (Como forma de identificar os informantes, utilizamos um “P” maiúsculo, seguido do número atribuído a cada professor, com a finalidade de resguardar a identidade dos participantes).

Quadro 3 – Conceitos teóricos mencionados

P1 P2 P3 P4 P5 P6
conhecimento prévio intertextualidade ________ dialogismo, gênero, enunciador,co-enunciador _______ _________ intertextualidade dialogismo, conhecimento de mundo inferências


        Ressaltamos que o pequeno número de questionários com o qual trabalhamos nos impossibilita alcançar uma maior visibilidade sobre o tema, como uma possível relevância dos conteúdos discutidos no Curso de Especialização, tais como os conceitos teóricos sobre a linguagem. De qualquer forma, fizemos como hipótese que conceitos como conhecimento prévio, conhecimento de mundo, enunciador e co-enunciador estariam presentes em um grande número de respostas, porque foram trabalhados ao longo de todo o curso, inclusive na confecção de tarefas práticas. No entanto, já que mais da metade dos informantes não estabeleceu tal relação, comprovou-se a existência de dificuldades por parte dos docentes em transpor esses conceitos para seu discurso, ainda que estes tivessem sido abordados em aula.
        Na segunda parte da análise, quatro informantes elegeram trabalhar com ensino médio (EM) e dois com o fundamental (EF). As tiras de Mafalda foram os textos mais utilizados. Ninguém optou por trabalhar com o texto de Galeano. Acrescentamos que, ainda que a pergunta tivesse sido realizada em português, não especificamos em que idioma deveria ser respondida, ficando tal escolha a cargo de cada informante. Não houve menção ao porquê de trabalhar com grupos de EF ou EM e somente justificativas no que se refere à opção pelo gênero.

Quadro 4 – Estatística da escolha dos textos.   
  P1 P2 P3 P4 P5 P6
Texto 1 XX    
Texto 2XXXXXX
Texto 3XXX  X
Texto 4      

Quadro 5 – Justificativa da escolha dos textos.

P1 –             Porque me parecieron más fácil para activar el conocimiento previo de los alumnos y por presentar una dosis de humor.
P2 –             1. Quadrinhos são sempre atrativos
                    2. Tipo de texto que propicia o trabalho de inferência.
P3 –             Apresentam linguagem e gênero acessíveis ao público a que as questões foram destinadas
P5 –             Pode despertar o interesse do aluno, já que eles adoram histórias em quadrinhos.
P6 –             Apresentam dialogismo, intertextualidade, abordam o mesmo tema permitem trabalha com os alunos a associação existente entre dois textos com relação a um tema relevante para essa faixa etária, que está construindo seus valores.


        Com base nas respostas, identificamos algumas crenças relacionadas especificamente a gêneros. Quando se afirma que a opção pela tira ocorre em função de que ela é “mais fácil para ativar o conhecimento prévio dos alunos e por apresentar uma dose de humor”, que facilita o trabalho com inferência, ou que é sempre mais atrativa, há uma pressuposição de que existem textos que podem dificultar a ativação do conhecimento prévio, assim como uma expectativa de que alguns textos, mais do que outros, propiciam o trabalho com a inferência. Se as tiras apresentam linguagem acessível, podemos supor que há gêneros específicos para determinados leitores. Acreditamos que essa afirmação caberia caso estivéssemos trabalhando com textos, por exemplo, da área de Medicina, de Estatística, mas não com tiras publicadas em jornais. Porém, vale ressaltar que as tiras também podem eventualmente apresentar diversas dificuldades, visto que exigem conhecimentos que muitas vezes não temos, como, por exemplo, informações sobre política, relacionadas a uma determinada comunidade; em resumo, conhecidas por um grupo específico.
        Além disso, se as tiras despertam o interesse dos alunos porque eles gostam delas, pode-se afirmar que, conforme nossos informantes, sempre é necessário despertar o interesse do leitor e esse interesse dependerá exclusivamente do público envolvido. Ou seja, o professor escolherá os textos segundo sua percepção daquilo que agrada aos alunos, restringindo-lhes a possibilidade de acesso a outros textos, como se não fosse sua função apresentar-lhes novas possibilidades de leitura. Pensamos que a não escolha do texto de Galeano, além dos motivos expostos pelos professores, deveu-se ao fato de que o mesmo não seja exemplo de um gênero muito utilizado e corrente, o que seguramente causou-lhes estranhamento.
        Ainda que a pré-leitura faça parte do trabalho de leitura em qualquer faixa etária, apenas o professor que optou pelo EM, destacou a importância de uma preparação prévia dos alunos, necessária ao trabalho com os vários textos existentes nas tiras.

Quadro 6 – Pré-leitura

P1
Prelectura
Escribir la frase “Conócete a ti mismo” en la pizarra y preguntarles a los alumnos si ya la han escuchado alguna vez y si saben a quién se atribuye. Tras hacerlo, poner los siguientes nombres y pedir que la asocien los asocien a su autor:
a) Platón
b) Sócrates
(negrilla del informante)
c) Napoleón Bonaparrte
d) René Descartes

Tras haber contestado, comentar un poco sobre quién fue Sócrates y Platón, y la dialéctica.

Lectura del texto a continuación con los alumnos: Sócrates e o Conhece-te a ti mesmo


        Com respeito ao conhecimento enciclopédico, revela-se uma inquietude com o possível desconhecimento, por parte de dois informantes, sobre textos de autores comuns a outras gerações, uma vez que os alunos provêm de camadas sociais distintas, implicando possíveis diferenças na bagagem cultural que trazem para a sala de aula.

Quadro 7 – conhecimento enciclopédico e de mundo.

P1
As charges selecionadas foram publicadas na época em que houve a votação para a decisão de vários rumos da sociedade brasileira, entre elas a da Reforma da Previdência. Logo, para entender esses textos há não só que voltar um pouquinho no tempo, mas também ativar alguns conhecimentos prévios, já que apresentam releituras, estão cheios de intertextualidade e só fazem sentido para o leitor que sabe quem foi Rodin e o que representa a Estátua da Liberdade americana.
P6
Vale ressaltar, que a interpretação das charges está associada a um conhecimento de mundo dos acontecimentos políticos e dos símbolos representados. Sem o conhecimento desse contexto, possivelmente o processo de compreensão seria dificultado ou diferente do pretendido pelo autor, visto que o leitor não teria subsídios para realizar as inferências necessárias a sua interpretação e correlação.


        Em relação às propostas de trabalho solicitadas, pudemos perceber que mesmo os professores que se referiram especificamente à noção de intertextualidade em suas reflexões iniciais tiveram dificuldades em transpô-la para as atividades práticas. Somente ocorreu a aplicação da dita noção em uma das propostas.
        Considerando a análise dos seis questionários devolvidos, pensamos que o desconhecimento da base teórica relacionada aos conceitos propostos por este trabalho dificultou a planificação das aulas, ou seja, ainda que conheçam a teoria, os informantes têm dificuldade em apropriar-se dela. Parece-nos importante destacar, uma vez mais, que a não devolução dos questionários por parte dos demais colegas, doze professores/pesquisadores, caracteriza uma desconsideração com propostas investigativas, procedimentos básicos da atividade de um professor, em nosso ponto de vista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

        Começamos nossas considerações finais salientando a importância da participação dos professores nos Cursos de Especialização oferecidos pelas universidades, no intuito de formar um professor mais consciente no que se refere às práticas pedagógicas, com condições de aliar a teoria estudada à realidade de seus alunos, em qualquer faixa etária ou nível de ensino. Um professor, sob nossa visão, é um profissional que deve saber conjugar o papel de pesquisador e educador.
        Ressaltamos também a importância de um estudo mais específico do conceito de intertextualidade em cursos de especialização, que oriente os docentes em sua aplicação em sala de aula, uma vez que nós professores somos os responsáveis pela adoção ou não desses aspectos teóricos no momento de planejá-las. Nossas escolhas no momento da elaboração de tarefas facilitam ou dificultam a compreensão de cada texto em qualquer nível de ensino. Compete a nós provocar a observação do aluno na direção da identificação das marcas polifônicas existentes nos textos, para que ele possa reunir e reformular as idéias presentes na infinidade de textos que atravessam cada texto.
        Levando em consideração as leituras realizadas sobre a teoria e a análise dos questionários, chegamos à conclusão de que solicitar informações complementares às de leitura, nas quais verifiquemos em um primeiro momento o conhecimento enciclopédico dos alunos a respeito de pontos que vão ser expostos, é fundamental para encaminhar o trabalho do professor. Isto é, ao elaborar as atividades deve-se ter em mente com antecedência quais são os conhecimentos gerais, as vivências, etc. de nossos alunos, antes de começar o trabalho com o texto propriamente dito.
        Além dessa sondagem anterior, sugerimos que o professor proponha tarefas com o objetivo de ampliar a bagagem cultural dos alunos, uma vez que, como já dissemos, pensamos que uma das funções desse profissional é, sem dúvida, contribuir com a formação de um aluno crítico, mais preparado para o mundo e suas leituras. Esse enriquecimento pode ocorrer por meio de qualquer atividade que consiga relacionar os conteúdos de ensino de língua estrangeira a aspectos que propiciem reflexão.
        Acrescentamos que é de suma importância que o professor seja receptivo às distintas leituras de cada texto, aberto a perceber a pluralidade de sentidos presentes nos mesmos, ainda que estes significados não reflitam seu próprio ponto de vista. Outrossim, é sempre necessário deixar claro para os alunos quais são os objetivos de ler um determinado texto e buscar direcionar suas expectativas em relação a cada um deles. Para isso, devemos trabalhar os elementos do gênero discursivo em questão, tratando de minimizar o desconhecimento das informações introduzidas por meio do intertexto, o que certamente acontecerá.
        Em resumo, conhecer as características de cada gênero facilitará a interpretação de cada texto por parte dos alunos, já que as possibilidades de sentido estarão reduzidas àquelas que façam parte de cada um. É também preciso aproveitar a transparência existente entre português e espanhol e trabalhar com material em língua materna, buscando determinar semelhanças que costumam existir entre os textos de um mesmo gênero, ainda que em idiomas distintos. Ao mesmo tempo, os alunos devem perceber que esses textos estão conectados a suas respectivas culturas, portanto, se esta muda, com certeza acontecem deslocamentos que devem ser considerados a partir da comparação entre elas.
        Somos da opinião que o professor deve trabalhar com distintos gêneros discursivos, uma vez que quanto mais expostos às diferentes modalidades de gêneros e formas de discurso os alunos estejam, mais fácil será identificar as características próprias a cada texto e relacionar os de língua estrangeira aos de língua materna. Nesse ponto, observa-se claramente a importância de atividades que permitam saber até que ponto os alunos podem identificar as características gerais dos distintos gêneros discursivos e também reconhecer o diálogo entre os gêneros, que costumam atribuir sentido aos textos, como, por exemplo, uma publicidade que inclua uma carta.
        Também é relevante incrementar esses conhecimentos com exemplos acessíveis aos alunos, vinculados a suas experiências cotidianas e incentivá-los a relacionar aspectos da gramática interna da língua materna aos de língua estrangeira.
        Para finalizar, depois de haver analisado os pressupostos teóricos nos quais se baseia nosso trabalho e as propostas dos professores que fazem parte de nossa investigação, consideramos imprescindível que haja um esforço coletivo entre os docentes em geral para enfatizar a importância de trabalhar com as noções de intertextualidade e gênero discursivo nas aulas de língua e, em nosso caso, de língua estrangeira.
        Mesmo que este trabalho seja uma reflexão inicial sobre o tema proposto – que certamente necessita de maiores discussões – retomamos nossa crença de que o professor deve buscar formar alunos críticos e reflexivos, capazes de identificar os diferentes sentidos existentes em cada discurso, uma vez que o dialogismo é o fio condutor que nos proporciona compreendê-los. Devemos estar atentos para a multiplicidade de possibilidades que possam dirigir a leitura de forma crítica e consciente, convertendo as aulas em espaços produtivos onde se expandam não somente os conhecimentos lingüísticos dos alunos, mas onde também seja a eles garantido um papel mais ativo, que lhes permita apropriar-se das informações presentes nos textos e organizá-las de forma que possam pensar sobre sua própria cultura e culturas alheias. Para isso, é fundamental a ação do professor, a quem cabe elaborar tarefas que provoquem tais reflexões.



NOTAS

1. Este trabalho originou-se a partir de nossa monografia final, do curso de especialização em Língua espanhola instrumental para leitura, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, apresentada em 2004, sob a orientação da Profª Drª Maria del Carmen F. González Daher.
2. Como não encontramos bibliografia suficiente que tratasse do ensino de espanhol, baseamo-nos em estudos com professores de inglês, que nos parecem refletir o ensino de E/LE.
3. Neste trabalho, nosso foco de interesse será o intertexto, compreendido como a remissão a um texto dentro de outro texto, e a intertextualidade como um conjunto de relações explícitas ou implícitas que este texto mantém com outros. “O intertexto é o conjunto dos fragmentos citados em um determinado corpus, enquanto a intertextualidade é o sistema de regras implícitas que o subentendem”. (Maingueneau, 1996/1998:88) Retomaremos estes conceitos ao longo do desenvolvimento deste item.
4. As charges e as tiras se relacionam principalmente com a imprensa e a caricatura. A charge tem uma linguagem que pode ser associada à linguagem icônica. O uso de onomatopéias, escritas com grandes letras, certos símbolos já aceitos universalmente (como uma lâmpada que se acende para explicar que o personagem teve uma idéia) têm um alcance comunicativo que outro meio de expressão dificilmente pode conseguir. Inicialmente estas historietas tinham um caráter cômico, daí o nome cómic-strip (tira cômica).


REFERÊNCIAS

Bakhtin, M. (1979). A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes,1992.

_________. (1929) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004.

Celani, M. & Collins, H. (2003). Formação contínua de professores em contexto presencial e à distância: respondendo aos desafios In: Reflexão e ações no ensino e aprendizagem de línguas. São Paulo: Mercado das Letras.

Charaudeau, P. & Maingueneau, D. (2004) Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto.

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AS AUTORAS

Fabiana da Cunha Ferreira, Professora Comando Aeronáutica RJ – Pós-graduação Espanhol/UERJ. A professora está atuando na Aeronáutica desde 2005, além de trabalhar em cursos livres e em curso Pré-vestibular. e-mail: feibe.cunha@ig.com.br Telefone para contato: 21-8882-0383

Maria Cristina Giorgi, Mestranda Lingüística – UERJ / CAPES, Pós-graduação Espanhol /UERJ. A professora atuou como substituta na UERJ e no Cap UERJ até 2004 e atualmente está terminado sua dissertação de mestrado sob a orientação da Profª Drª Maria del Carmen F. G. Daher. Trabalha como professora voluntária no PVNC – Pré-Vestibular para Negros e Carentes. e-mail: cristinagiorgi@terra.com.br Telefone para contato: 21- 9662-7885